"O MAIOR INIMIGO DA CRIATIVIDADE É O BOM-SENSO" Picasso. Sem pretensões, que não sejam as de mostrar;

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domingo, 2 de novembro de 2008

Incidente na Via Sacra





Incidente na Via Sacra
A Igreja do Sacramento, sita na Calçada do mesmo nome, que vai do Largo do Carmo à Rua Garrett, esteve bastante ligada à minha família, e bastante presente na minha memória.

Nela casaram meus pais; fomos nós batizados, fizemos todas as Comunhões o Crisma etc.

Eu e meu irmão desde muito novos fomos “compelidos” a uma forte educação Católica.

Minha avó materna, cedo enviovou, e a igreja tornou-se para ela o refúgio espíritual, quotidiano, pois não era senhora de amizades fáceis.

Claro que nós por imposição, além de frequentarmos a Catequese Dominical pós missa, também por vezes lá tínhamos que marcar presenças nos terços, Te Deum e “principalmente” a Via Sacra por alturas da Páscoa.

Friso a palavra “principalmente” porque de todas as celebrações religiosas, a Via Sacra era para nós miúdos de sete/oito anos, francamente a mais penosa.

O longo ritual consistia em dar a volta à igreja, fazendo paragens nos vários altares, cada um deles com sua representação própria sobre o martírio de Jesus até ao Calvário e sua crucificação.

Eu e meu irmão vestia-mos umas opas vermelhas (capas sem mangas) e eram-nos dadas duas tochas de culto, e integrávamos o cortejo sempre com o Padre Carvalho como Pároco.

O Padre Carvalho, era pessoa já de alguma idade, e para nós, não primava pela simpatia, e muito menos pela paciência com a miudagem que ao Domingo, antes da catequese fazia uma xinfrineira nos claustros da Igreja.
Era bastante ríspido, tinha um semblante carregado, e sempre uma maneira de olhar que gelava os ossos !!

As tochas de culto, teriam cerca de 1,30 m de altura, e um diâmetro de 5 cm e consistiam num longo corpo de madeira, cuja ponta em parte oca, ocultava uma grande mola que pressionava uma vela contra um rebordo metálico e que estava acesa durante toda a Via Sacra.

Quando nos ajoelhava-mos, e o padre lia os extensos textos bíblicos alusivos, para compensar o enfado, o nosso entretenimento, era com as unhas ir arrancando os bocados de cera quente e mole que iam escorrendo da vela, e fazia-mos pequenas bolas que sorrateiramente mandava-os para o meio do chão.

Certa vez, estava eu no ”escarafunchanço” na cera mole, quando de repent
e, salta a cabeça metálica, de dentro da tocha e uma enorme mola, fica balançando frenéticamente de uma lado para o outro com a vela acesa na ponta lançando cera quente para cima das pessoas em redor.

A minha atrapalhação era enorme...tremia todo e tentava desesperado agarrar a mola e metê-la no sítio, mas não conseguia.

A minha figura devia ser única, eu muito corado, de joelhos, aflito para tentar compor a situação...meu irmão ria...minha avó se tivesse um buraco no chão, decerto que nele se enfiava...o Padre Carvalho, devorava-me com aquele olhar de fogo...a confusão era geral, tendo sido o sacristão que abrupta e finalmente me tirou a tocha das mãos e lá a levou para a Sacristia.

Como complemento, este Sacristão, era também uma figura sinistra para a miudagem.

Só recordo o choro de minha avó, referindo a humilhação por que tinha passado !! quando já no caminho para casa, e a promessa de queixas aos meus pais, com o complemento punitivo assegurado.

Não lembro se na realidade isso aconteceu ou não, mas sei que ela durante muito tempo nem me podia ver.
Esta minha avó de seu nome Conceição, faleceu de repente em 1973 com a bonita idade de 84 anos, perfeitamente lúcida e activa. Era-me muito querida.

Senhora super sensível, os anos que viveu em Inglat
erra, bruniram ainda mais a sua personalidade, sendo uma encantadora conversadora e de um trato fino e meigo, que com muita saudade recordo.

Já adulto, era a minha confidente, por vezes conselheira, e até banqueira, pois de quando em vez lá lhe metia um vale para umas notitas, “cravanços” a que ela generosamente nunca se opunha.

Já depois de vir da Guiné, nas reuniões familiares Natalícias, invariavelmente, o episódio da tocha era recordado.

Agnóstico convicto, desde menino leitor compulsivo, os milhões de páginas devoradas, levam-me a aceitar, mas tenho muita dificuldade em compreender o que leva as pessoas à religiosidade.

Será a fraqueza, a insegurança e os medos, a solidão, o pouco saber ??!!

Mesmo nos momentos mais atrozes da vida; estar debaixo de bombardeamentos na Guiné, o desaparecimento de quem mais amo, gravíssimo problema de saúde...nunca senti necessidade de apelar a Deuses ou Santos, bem pelo contrário, os maus momentos ainda veicularam mais, o que sobre isso penso.

Por vezes pergunto-me; se na realidade existe alguém tão bom e misericordioso, como oiço tantos defenderem, onde andará ?
Deve ser cego e surdo, e tudo o que se passa neste desgraçado mundo merece a sua total indiferença ?

Eu tenho as minhas respostas.

Há no entanto um santo, esse sim de minha inteira devoção; o São Justo !

Santo muito recriminador, teimoso, mas grande companheiro e perito em me agarrar quando por vezes estou prestes a cair...é assim...como que um “anjinho da guarda sem asas” !!

Quando em fases de muita responsabilidade, pressão e stress profissional, sentia a cabeça em turbilhão, pedia a tarde por conta das férias (o que fazia uma tremenda confusão ao então administrador da firma), saía do escritório e iniciava o trajecto a pé das Picoas rumo á Av. Almirante Reis.

Sempre devagar, vendo montras, observando tudo, e por volta das duas da tarde, já com os restaurantes meio vazios, escolhia um dos muitos da avenida, com bom ambiente e ementa a contento, almoçava tranquilamente e fazia uma passagem mental pelo momento.

No fim da refeição, já o espírito era outro, e rumava então ao Martin Moniz, Rossio (
tirava a falta com uma “Ginginha com duas”) rua do Ouro, elevador de Santa Justa, Largo do Carmo, Chiado, Largo de Camões.

Sentava um pouco no Café Camões, esquina com a rua da Misericórdia, bebia mais um café e então com calma dirigia-me à Igreja dos Mártires, depois à do Sacramento.

Na Igreja do Sacramento, logo à entrada existe uma escu
ltura em madeira policromada da Virgem com Jesus nos braços (Pietá).
Embora as proporções sejam à escala humana, recordo que quando muito miúdo, a imagem me metia muito medo e parecia-me gigantesca.

Fenómeno que nunca compreendi; ao entrar em qualquer igreja, de imediato sentia uma paz de espírito e tranquilidade absolutamente excepcionais. Era como se me tivessem mudado o cérebro...sentia uma abstracção e leveza maravilhosas de tudo o que me rodeava.

Não era muito longa esta visita ás igrejas, mas aqueles minutos, operavam em mim de uma forma muito marcante e benéfica, era como se os problemas se tivessem esfumado.

Nunca atribui este fenómeno a forças divinas, mas sim ao silêncio reinante, a meia-luz, aos odores característicos e á grandiosidade arquitectónica e artística destes templos, que sempre me esmagaram.

Terminava o périplo dessa tarde, passando pelas ruas e locais das minhas origens, sempre atento às transformações que o tempo e progresso vão operando, e cumprimentando um ou outro conhecido.

De volta ao Rossio, e já perto das sete da tarde, voltava a
tirar a falta na Ginginha, desta vez na da rua do Coliseu (Portas de S. Antão), e mais tranquilo, rumava a casa.

No dia seguinte tudo se tinha tornado mais fácil e a vida continuava...até ao próximo retemperador passeio...


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